Freqüência Global

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Há alguns meses, o editor da Pixel Magazine - uma antologia de quadrinhos - me pediu para escrever um texto para a revista. Como outros convidados estavam fazendo, deveria ser uma apreciação de alguma série da Magazine que eu gostasse. Escolhi Freqüência Global.

A revista acabou morrendo e o texto nunca saiu. E nunca deve sair impresso. Então publico-o agora.

CORREÇÃO: Pelo que me informaram o Fábio Conti e o próprio ex-editor da Pixel Magazine, Cassius Medauar, o texto foi publicado sim, na Pixel Magazine #21. Estou a quilômetros de distância do meu exemplar para consultar agora.

Freqüência global, cultura participativa, ficção científica e como salvar o mundo
ÉRICO ASSIS

Saiu há pouco no Brasil o livro Cultura da Convergência (editora Aleph), do professor de Comunicação do renomado MIT Henry Jenkins. É um trabalho genial. O autor parte do que você pode ver na sua volta: estamos passando por um momento de transformação tecnológica, com cada vez mais aparelhos que concentram uma imensa capacidade de produção e recepção midiática: pense em iPods e iPhones, em celulares com GPS e consoles de videogame com wi-fi, e na profusão de computadores tão potentes quanto portáteis.

O que importa, para Jenkins, não são as capacidades destes aparelhos, mas como estas tecnologias afetam nossa economia, nossa educação e nossa produção de conhecimento, nossa sociedade globalizada e nossa política. E gera o que ele chama de cultura participativa.

O ponto-chave desta cultura participativa é que a idéia de interatividade tomou conta. A Internet liberou, e torna cada vez mais fácil, tanto produção quanto recepção de conteúdo. Podemos criar nossos blog, nossos vídeos no YouTube, podemos comentar as matérias dos maiores jornais do mundo, assim como podemos virar jornalistas, críticos, ativistas, políticos – ao custo de alguns centavos da conexão e alguns cliques. A partir daí, somos lidos e vistos por quem conseguirmos conquistar. No momento em que todo mundo pode ter sua mídia, não nos satisfazemos mais em sermos audiência ou consumidores passivos – queremos participar.

E participar de tudo, desde o envolvimento com nossas marcas preferidas até desvendar os segredos de Lost. Queremos não só ler Harry Potter, mas nos dividirmos em grupos que vão traduzir o original para que ele chegue mais rápido às crianças (e não tão crianças) de todo o mundo. Queremos criar vídeos fazendo graça do candidato à presidência, publicar no YouTube e dar uma baque numa campanha – a partir do nosso laptop.

Dominando algumas noções da velha ciência do “como chamar atenção”, qualquer pessoa pode provocar revoluções a partir da tecnologia que tem no seu quarto – com uma proximidade e uma participação na política antes limitada às grandes mídias e ao grande capital.

É neste ponto do livro que Jenkins cita nada mais nada menos que Freqüência Global, a série de Warren Ellis que você acompanha aqui na Pixel Magazine. Está lá, na página 318:

Ellis concebeu a história na esteira do 11 de Setembro como uma alternativa ao clamor por maior poder estatal e restrições paternalistas às comunicações: a Freqüência Global não imagina o governo salvando os cidadãos de qualquer mal que os aflija. Em vez disso, como explica Ellis, “na Freqüência Global, nós mesmos nos salvamos”. (...) A maior parte dos desafios vem, apropriadamente, dos destroços deixados para trás pelo colapso do complexo industrial-militar e o fim da guerra fria – “as coisas ruins e malucas das quais o público nunca soube”. Em outras palavras, os soldados cidadãos utilizam o conhecimento distribuído para superar os perigos do sigilo do governo.
“Soldados cidadãos” é a melhor descrição do cenário de ficção científica que Ellis imagina em Freqüência Global. Se podemos unir nossas cabeças e nossos diferentes conhecimentos em fóruns de discussão – eu entendo de gibis, você entende de Física, ele estuda narrativas heróicas, o outro cara ouviu os produtores conversando num bar - para descobrir o fim de Lost, também poderíamos usar este método para salvar o mundo de ataques terroristas, de desastres naturais, de políticos e suas guerras. Na cultura participativa, minha inteligência combina-se com a inteligência em rede dos meus colegas para transformar o planeta.

John Rogers, produtor e roteirista da malfadada série de TV baseada em Freqüência Global – cuja ascensão e queda você encontra via Google ou no livro de Jenkins -, conta em seu blog uma amostra do poder da idéia de Ellis. É uma história da gravação do único episódio da série, que nunca foi ao ar mas está disponível nos porões da Internet. É a adaptação da primeira história da HQ, já publicada na Pixel Magazine.

Há uma seqüência na qual Aleph coloca todo mundo na Freqüência e eles descobrem qual é o problema. Todos os experts-cidadãos contribuindo para salvar vidas de estranhos. Para ter uma idéia da situação, todos os atores aceitaram vir à gravação às 3 da manhã, e fazer seus papéis ao vivo. Então aconteceu como no gibi: fizemos o chamado, as pessoas responderam, suas vozes aparecendo, todas de uma vez, um longo take sem falhas... como se tudo fosse real.

Foi incrível, um destes momentos alquímicos onde aquilo deixou de ser televisão, deixou de ser performance, e realmente nos colocou em outro mundo.

Nelson diz “corta”. Entro no set e percebo um estranho silêncio. O elenco e a equipe técnica estão assustados. Algumas pessoas estão se segurando. Eu ouço um soluço. Me viro para uma menina da produção e digo “Ei, tudo bem? O que há?”.

E ela se desmancha em lágrimas. “Eu... e se fosse de verdade? Não seria maravilhoso se as pessoas pudessem mesmo...” Ela não consegue falar, limpa os olhos. Sussurra: “Seria tão fantástico se fosse real.”

* * *

Freqüência Global foi publicada nos EUA entre 2002 e 2003. Warren Ellis, como todo bom escritor de ficção científica, captou e pôs no papel uma sensação cultural que estava apenas alguns anos à frente. A prova disso é que livros como Cultura da Convergência – e outros, como Smart Mobs, de Howard Rheingold (inédito no Brasil), e Wikinomics, de Don Tapscott e Anthony Williams (editora Nova Fronteira) - começaram a documentar e teorizar estas relações entre novas tecnologias e cultura participativa, que estamos vivendo, efetivamente, agora.

Em certo sentido, você está lendo a série atrasado. Ficção científica perde a graça quando estamos vivendo-a, não é mesmo? A melhor prova disto é que Ellis, embora tenha prometido, nunca retornou a Miranda Zero e à sua rede global de “soldados cidadãos”, deixando-os no limbo das grandes idéias dos quadrinhos.

Apesar disto, é importante reler Freqüência Global hoje. É um gibi, é uma ficção, mas tão calcada na realidade que parece um chamado para o que podemos fazer e o que podemos ser pelo mundo. É nestes momentos que a ficção científica atinge seu potencial máximo.

Já tentou-se publicar Freqüência Global duas vezes no Brasil. As duas faliram as editoras (não por culpa da série, é bom ficar claro). O jeito é pegar as duas coletâneas publicadas nos EUA:

4 Comments

Érico, belo texto. Cultura da Convergência foi o livro mais impactante que li nos últimos anos, sem dúvidas. E fiquei com vontade de ler Frequência Global, mesmo que atrasado.

Vou citar este artigo teu na minha dissertação de mestrado, ok? :)

Tinha sido publicado mesmo. Um dos melhores textos que já li decodificando as ideias de Frequência Global. Pena que saiu logo na edição derradeira. :)

Que coisa bem ingênua. Os cidadão de bem, os soldados cidadãos, os mesmos que decifram o fim de Lost, unem seus conhecimentos pra salvar o mundo. Oh! E como eles fazem isso? na wikipedia? pelo msn?
e como eles impedem os terroristas de lerem as mesmas coisas que eles e meterem uma bala na cabeça de cada um?

que besteira.

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This page contains a single entry by Érico Assis published on maí 17, 2009 9:26 EH.

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